Violência,
desigualdade e políticas compensatórias
Há quem diga que estar na pele do outro ajuda a entender
seus sentimentos. Não dá para estar na pele do outro no sentido real do termo,
mas figurativamente é o que devemos tentar fazer quando estamos julgando
alguém, emitindo opiniões e sobretudo quando estes atos forem seguidos de algum
tipo de interferência na vida alheia. Na prática, a forma como nos inserimos no
mundo nos aproxima e ao mesmo tempo nos distancia dos diferentes contextos da
vida social. Por seu turno, a inserção social está muito relacionada ao nosso
nível de renda. Quanto maior for a desigualdade social, possivelmente maior
será o afastamento real entre pobres e ricos. Este afastamento não é só
material, é também simbólico, representacional, criando mundos que coexistem
mas se afastam. É a cultura do “estrangeiro”, onde, embora formalmente
pertences à mesma nação estes seres não se reconhecem mutuamente. Mesmo que haja proximidade física, elementos
simbólicos e materiais se erguem como verdadeiras barreiras que apartam os
homens. A proximidade física pode se dar por um conjunto de moradias bem
arquitetadas cercadas pelos barracos furados, erguidos com papelão e rejeitos
da sociedade de consumo, mas esta proximidade está separada por redes de
segurança, por muros, por câmeras, por uma série de equipamentos e códigos e
gente e aparatos que criam uma verdadeira apartação social.
Este é o resultado de um Brasil de escravos. Este é o
resultado de um Brasil sem república, ou da república criada por decreto para
legar aos filhos bem nascidos os direitos cartoriais, que ainda marcam a boa
vida de uma parcela pequena e bem abastada de nossa população. Este é o
resultado de um país, que primeiro optou por uma modernização conservadora e
excludente nos anos 1970 e depois ficou vinte e cinco anos sob a égide de uma
desorganização de suas estruturas de serviços sociais e de infraestrutura
física, por conta da crise fiscal do Estado, resultado da explosão do
endividamento externo no início dos anos oitenta. Hiperinflação e baixo
crescimento produziram cidades doentes e um cultura social de extrema
violência. Sim, o Brasil é extremamente violento e profundamente desigual.
Nossas cidades são o resultado concreto disto: faltam elementos básicos para a vida
social, como esgotamento sanitário e sistemas adequados de mobilidade urbana.
As imagens dos aglomerados urbanos que se estendem na franja das megacidades, ou
das manchas degradadas na cartografia das áreas ricas, como São Paulo, e que se
elevam pela topografia vertical das montanhas cariocas chegam a compor uma
manifestação pictórica surrealista. Há pouco o IBGE divulgou dados sobre
Florianópolis, como a cidade com maior número de ricos (classes A e B) em
termos proporcionais. Esta Beverly Hills do sul é um estrondo de má
administração, de especulação imobiliária e de violência. É um colosso de
desigualdade. São mais de 68 favelas espalhadas pela capital catarinense.
Nego-me a falar sobre os índices de esgotamento sanitário, pois a cidade é uma
cloaca gigantesca. Estas duas cidades têm prioridades diferentes, desejos
diferentes e imagem coletivas muitas vezes antagônicas.
A desigualdade e o desmantelamento do estado, no Brasil, deixaram
raízes profundas. Faz pouco que os problemas começaram a ser atacados por meio
de politicas compensatórias no plano social, embora o passivo seja imenso e o
tempo para diminuí-lo escasso. A violência guarda uma forte relação com a desigualdade,
pior, a desigualdade produz uma cultura de violência sem que as pessoas se deem conta disto. Como a
desigualdade está profundamente associada a uma sociedade que se estabelece com
uma estrutura de recompensas injusta, ela cria um discurso violento e
autoritário que aparece na relação entre o andar de cima com o andar de baixo. A
violência vai e volta, como na física. O lugar extremo em que este discurso se
materializa de forma dantesca é o sistema prisional brasileiro, feito para
pobres, miseráveis e pretos. São laboratórios do inferno, onde tortura, sevícia
e toda sorte de doenças físicas e mentais proliferam. O Brasil é uma pátria que
atenta aos direitos humanos, sobretudo, porque a insensibilidade com o outro é
acachapante. Como a apartação social ganhou contornos dramáticos no período de
nossa decadência econômica, seus efeitos são muito difíceis de serem
combatidos, principalmente porque internalizamos uma sociabilidade que não
reconhece como “pertencente” justamente aqueles que mais duramente sofreram os
efeitos perversos dos ajustes econômicos do passado. Há quem diga: pobreza não
guarda relação com a violência. Sim, não guarda, mas numa sociedade
capitalista, que promete a ascensão social como seu fundamento moral, a
interrupção contínua desta possibilidade pela captura de suas instituições por
parte da elite branca (sim, os beneficiários históricos no Brasil são brancos),
gera uma reação violenta, que politicamente não organizada desemboca na selva
da luta pelos quinhões que as mágicas propagandeadas pela indústria cultural
oferece. Condições sanitárias ruins, saúde e educação sofríveis e habitações
degradas, somadas ao subemprego ou desemprego, quando levadas a cabo de forma
permanente durante longo período de tempo, não podem resultar numa sociedade
harmônica. Este é o retrato do Brasil. Reagir a isto por meio das corporações militares
subnacionais, da polícia civil e da estrutura de coerção é uma contingência,
uma manifestação de que algo insuportável precisa ser corrigido. Ter isto como
uma solução estruturante é caminhar para um contexto onde a violência se
retroalimento numa escala, que de tempos em tempos pode ser mitigada, mas que
volta com força no agravamento da situação econômica quando das baixas dos
ciclos de negócios. O Brasil tem hoje, para ricos e pobres, a violência como
elemento constitutivo de suas sociabilidades, basta ver a manifestação estética
desta realidade pela produção cultural de entretenimento relacionado à
violência. Esta tragédia tem convivido com forças de contenção, sendo a
principal delas a diminuição do desemprego, de forma persistente, nos últimos
dez anos. Numa quadra onde o contexto internacional é sombrio, estamos
conseguindo manter níveis elevados de emprego. As ações compensatórias
específicas, como o bolsa família, têm possibilitado que o país conste como o
maior case de sucesso no combate à pobreza,
mas tão importante quanto, à desigualdade. A isto soma-se a política de
valorização real do salário mínimo, que beneficia grande parte de população
pobre e miserável, por conta de sua relação com a seguridade social. Será
preciso aumentar, muito, o investimento em educação e possibilitar, já, porque
o passivo é enorme, o acesso do andar de baixo ao que nossas instituições
públicas podem oferecer de melhor. A universidade pública é um destes lugares.
O acesso aos postos de trabalho no aparato estatal também deve ser uma meta. O
Estado brasileiro não pode ser a expressão pura e simples do “mérito”, leia-se,
do bom desempenho que os candidatos podem auferir numa prova específica. O
conceito de acesso, sem prescindir do mérito (pelo óbvio), precisa ser ponderado
por ingredientes sócio ambientais. Isto implica mudar a ossatura do estado,
levando para dentro de sua constituição a pluralidade da vida social brasileira.
Nosso Estado é, ainda, um Estado a serviço das classes sociais mais abastadas.
Distorções estruturais como temos no Brasil não serão corrigidas pelo beneplácito
das ações caridosas, tampouco pelo livre jogo do mercado. Assim como uma
situação econômica crítica não muda de patamar pelo puro e simples espírito
animal dos capitalistas, a transformação das injustiças não será mero resultado
do crescimento econômico, embora este seja um componente importantíssimo.
Para que se desconstrua a cultura da violência é preciso que
insistamos na expansão dos setores de renda média e que façamos as classes A e
B contribuírem com os esforços de diminuição das desigualdades. Isto se faz
pela cessão de parte de sua riqueza, seja da riqueza conquistada pelo
trabalho, mas principalmente daquela
originária das rendas patrimoniais, que muitas vezes não vieram pelo esforço do
trabalho. O acesso, para não dizer exclusivo, privilegiado aos melhores postos
da burocracia estatal, aos melhores bancos das escolhas públicas, o acesso
desigual ao aparato judicial são todos elementos de produção de desigualdade em
larga escala. Os que a isto estão acostumados tendem a encarar a perda destes
privilégios, ou da exclusividade de acesso, como um ato de rapina. Não há,
nestes, a consciência sobre a verdadeira rapina: a interdição histórica do
acesso das camadas populares aos bens públicos essenciais. A interdição à uma
condição ambiental mínima para que pudessem competir no mercado, desenvolvendo
suas “vocações”, suas habilidades específicas. A violência no Brasil é tão
grande, a violência contra os debaixo, que 200 ocorrências de incêndio foram
registradas este ano nas favelas de São Paulo. Intencional ou não, esta
pirotecnia social aparece pelas condições de degredo que esta gente se
encontra. Somente uma alienação patológica, produto do apartação social, pode
legar alguém a imaginar que uma sociedade com este tipo de fratura pode dar-se
ao luxo de não praticar políticas de compensação social ativa. Trata-se de um
autismo de classe, repito: de classe. Como grupos encerrados em seus próprios
enredos, confinados em suas belas arquiteturas, simplesmente não podem aceitar
o que se passa diante de seus olhos, pois não reconhecem, não conferem ao
outro, ao degredado, o fato de que foram e são constituídos da mesma matéria: a
carne humana. Agora, sob o manto de pseudo intelectuais, encontram
representantes vociferantes na mídia tradicional, capazes de distorcer fatos,
como quem troca de roupa, de promover uma verdadeira mixórdia conceitual que
confunde as cabeças cheirosas, porém pouco pensantes. Há pouco li um destes
filósofos comparar as políticas compensatórias com a criação de um Estado
fascista. Esquece que se há algo de fascista nas políticas públicas e no
imaginário social do Brasil contemporâneo, são as políticas higienistas e a
concepção do combate à violência pelo utilização preponderante do aparato
repressivo, coercitivo do Estado. Se há algo de fascista, este algo está na
utilização cotidiana da tortura como método de investigação e de subjugação
humana. Estas, sim, são políticas muito apropriadas para a ética e a estética
da violência que se espalha pelo país. Vale lembrar, estas manifestações
intestinais de rancor e ódio de classe, contra as políticas compensatórias,
encontra parceiros à altura na extrema esquerda do espectro ideológico, que as
enxerga como meras ferramentas de acomodação social, em prejuízo das
transformações estruturais, possíveis somente pela revolução. Isto é muito
bacana não fossem os objetos em questão, a miséria e a pobreza, constituídos de
gente, de carne humana, de pessoas reais e não de fantoches imaginários ao
serviço de vanguardas iluminadas.
A grande transformação que estas políticas podem trazer,
além de dotar os debaixo com instrumentos para a conquista da cidadania plena e
a ascensão social, é colocar lado a lado, na convivência cotidiana aqueles que
hoje estão apartados. Será um desafio institucional e tanto, será um desafio
humano necessário.