quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Violência, desigualdade e políticas compensatórias


Violência, desigualdade e políticas compensatórias
Há quem diga que estar na pele do outro ajuda a entender seus sentimentos. Não dá para estar na pele do outro no sentido real do termo, mas figurativamente é o que devemos tentar fazer quando estamos julgando alguém, emitindo opiniões e sobretudo quando estes atos forem seguidos de algum tipo de interferência na vida alheia. Na prática, a forma como nos inserimos no mundo nos aproxima e ao mesmo tempo nos distancia dos diferentes contextos da vida social. Por seu turno, a inserção social está muito relacionada ao nosso nível de renda. Quanto maior for a desigualdade social, possivelmente maior será o afastamento real entre pobres e ricos. Este afastamento não é só material, é também simbólico, representacional, criando mundos que coexistem mas se afastam. É a cultura do “estrangeiro”, onde, embora formalmente pertences à mesma nação estes seres não se reconhecem mutuamente.  Mesmo que haja proximidade física, elementos simbólicos e materiais se erguem como verdadeiras barreiras que apartam os homens. A proximidade física pode se dar por um conjunto de moradias bem arquitetadas cercadas pelos barracos furados, erguidos com papelão e rejeitos da sociedade de consumo, mas esta proximidade está separada por redes de segurança, por muros, por câmeras, por uma série de equipamentos e códigos e gente e aparatos que criam uma verdadeira apartação social.
Este é o resultado de um Brasil de escravos. Este é o resultado de um Brasil sem república, ou da república criada por decreto para legar aos filhos bem nascidos os direitos cartoriais, que ainda marcam a boa vida de uma parcela pequena e bem abastada de nossa população. Este é o resultado de um país, que primeiro optou por uma modernização conservadora e excludente nos anos 1970 e depois ficou vinte e cinco anos sob a égide de uma desorganização de suas estruturas de serviços sociais e de infraestrutura física, por conta da crise fiscal do Estado, resultado da explosão do endividamento externo no início dos anos oitenta. Hiperinflação e baixo crescimento produziram cidades doentes e um cultura social de extrema violência. Sim, o Brasil é extremamente violento e profundamente desigual. Nossas cidades são o resultado concreto disto: faltam elementos básicos para a vida social, como esgotamento sanitário e sistemas adequados de mobilidade urbana. As imagens dos aglomerados urbanos que se estendem na franja das megacidades, ou das manchas degradadas na cartografia das áreas ricas, como São Paulo, e que se elevam pela topografia vertical das montanhas cariocas chegam a compor uma manifestação pictórica surrealista. Há pouco o IBGE divulgou dados sobre Florianópolis, como a cidade com maior número de ricos (classes A e B) em termos proporcionais. Esta Beverly Hills do sul é um estrondo de má administração, de especulação imobiliária e de violência. É um colosso de desigualdade. São mais de 68 favelas espalhadas pela capital catarinense. Nego-me a falar sobre os índices de esgotamento sanitário, pois a cidade é uma cloaca gigantesca. Estas duas cidades têm prioridades diferentes, desejos diferentes e imagem coletivas muitas vezes antagônicas.
A desigualdade e o desmantelamento do estado, no Brasil, deixaram raízes profundas. Faz pouco que os problemas começaram a ser atacados por meio de politicas compensatórias no plano social, embora o passivo seja imenso e o tempo para diminuí-lo escasso. A violência guarda uma forte relação com a desigualdade, pior, a desigualdade produz uma cultura de violência sem que  as pessoas se deem conta disto. Como a desigualdade está profundamente associada a uma sociedade que se estabelece com uma estrutura de recompensas injusta, ela cria um discurso violento e autoritário que aparece na relação entre o andar de cima com o andar de baixo. A violência vai e volta, como na física. O lugar extremo em que este discurso se materializa de forma dantesca é o sistema prisional brasileiro, feito para pobres, miseráveis e pretos. São laboratórios do inferno, onde tortura, sevícia e toda sorte de doenças físicas e mentais proliferam. O Brasil é uma pátria que atenta aos direitos humanos, sobretudo, porque a insensibilidade com o outro é acachapante. Como a apartação social ganhou contornos dramáticos no período de nossa decadência econômica, seus efeitos são muito difíceis de serem combatidos, principalmente porque internalizamos uma sociabilidade que não reconhece como “pertencente” justamente aqueles que mais duramente sofreram os efeitos perversos dos ajustes econômicos do passado. Há quem diga: pobreza não guarda relação com a violência. Sim, não guarda, mas numa sociedade capitalista, que promete a ascensão social como seu fundamento moral, a interrupção contínua desta possibilidade pela captura de suas instituições por parte da elite branca (sim, os beneficiários históricos no Brasil são brancos), gera uma reação violenta, que politicamente não organizada desemboca na selva da luta pelos quinhões que as mágicas propagandeadas pela indústria cultural oferece. Condições sanitárias ruins, saúde e educação sofríveis e habitações degradas, somadas ao subemprego ou desemprego, quando levadas a cabo de forma permanente durante longo período de tempo, não podem resultar numa sociedade harmônica. Este é o retrato do Brasil. Reagir a isto por meio das corporações militares subnacionais, da polícia civil e da estrutura de coerção é uma contingência, uma manifestação de que algo insuportável precisa ser corrigido. Ter isto como uma solução estruturante é caminhar para um contexto onde a violência se retroalimento numa escala, que de tempos em tempos pode ser mitigada, mas que volta com força no agravamento da situação econômica quando das baixas dos ciclos de negócios. O Brasil tem hoje, para ricos e pobres, a violência como elemento constitutivo de suas sociabilidades, basta ver a manifestação estética desta realidade pela produção cultural de entretenimento relacionado à violência. Esta tragédia tem convivido com forças de contenção, sendo a principal delas a diminuição do desemprego, de forma persistente, nos últimos dez anos. Numa quadra onde o contexto internacional é sombrio, estamos conseguindo manter níveis elevados de emprego. As ações compensatórias específicas, como o bolsa família, têm possibilitado que o país conste como o maior case de sucesso no combate à pobreza, mas tão importante quanto, à desigualdade. A isto soma-se a política de valorização real do salário mínimo, que beneficia grande parte de população pobre e miserável, por conta de sua relação com a seguridade social. Será preciso aumentar, muito, o investimento em educação e possibilitar, já, porque o passivo é enorme, o acesso do andar de baixo ao que nossas instituições públicas podem oferecer de melhor. A universidade pública é um destes lugares. O acesso aos postos de trabalho no aparato estatal também deve ser uma meta. O Estado brasileiro não pode ser a expressão pura e simples do “mérito”, leia-se, do bom desempenho que os candidatos podem auferir numa prova específica. O conceito de acesso, sem prescindir do mérito (pelo óbvio), precisa ser ponderado por ingredientes sócio ambientais. Isto implica mudar a ossatura do estado, levando para dentro de sua constituição a pluralidade da vida social brasileira. Nosso Estado é, ainda, um Estado a serviço das classes sociais mais abastadas. Distorções estruturais como temos no Brasil não serão corrigidas pelo beneplácito das ações caridosas, tampouco pelo livre jogo do mercado. Assim como uma situação econômica crítica não muda de patamar pelo puro e simples espírito animal dos capitalistas, a transformação das injustiças não será mero resultado do crescimento econômico, embora este seja um componente importantíssimo.
Para que se desconstrua a cultura da violência é preciso que insistamos na expansão dos setores de renda média e que façamos as classes A e B contribuírem com os esforços de diminuição das desigualdades. Isto se faz pela cessão de parte de sua riqueza, seja da riqueza conquistada pelo trabalho,  mas principalmente daquela originária das rendas patrimoniais, que muitas vezes não vieram pelo esforço do trabalho. O acesso, para não dizer exclusivo, privilegiado aos melhores postos da burocracia estatal, aos melhores bancos das escolhas públicas, o acesso desigual ao aparato judicial são todos elementos de produção de desigualdade em larga escala. Os que a isto estão acostumados tendem a encarar a perda destes privilégios, ou da exclusividade de acesso, como um ato de rapina. Não há, nestes, a consciência sobre a verdadeira rapina: a interdição histórica do acesso das camadas populares aos bens públicos essenciais. A interdição à uma condição ambiental mínima para que pudessem competir no mercado, desenvolvendo suas “vocações”, suas habilidades específicas. A violência no Brasil é tão grande, a violência contra os debaixo, que 200 ocorrências de incêndio foram registradas este ano nas favelas de São Paulo. Intencional ou não, esta pirotecnia social aparece pelas condições de degredo que esta gente se encontra. Somente uma alienação patológica, produto do apartação social, pode legar alguém a imaginar que uma sociedade com este tipo de fratura pode dar-se ao luxo de não praticar políticas de compensação social ativa. Trata-se de um autismo de classe, repito: de classe. Como grupos encerrados em seus próprios enredos, confinados em suas belas arquiteturas, simplesmente não podem aceitar o que se passa diante de seus olhos, pois não reconhecem, não conferem ao outro, ao degredado, o fato de que foram e são constituídos da mesma matéria: a carne humana. Agora, sob o manto de pseudo intelectuais, encontram representantes vociferantes na mídia tradicional, capazes de distorcer fatos, como quem troca de roupa, de promover uma verdadeira mixórdia conceitual que confunde as cabeças cheirosas, porém pouco pensantes. Há pouco li um destes filósofos comparar as políticas compensatórias com a criação de um Estado fascista. Esquece que se há algo de fascista nas políticas públicas e no imaginário social do Brasil contemporâneo, são as políticas higienistas e a concepção do combate à violência pelo utilização preponderante do aparato repressivo, coercitivo do Estado. Se há algo de fascista, este algo está na utilização cotidiana da tortura como método de investigação e de subjugação humana. Estas, sim, são políticas muito apropriadas para a ética e a estética da violência que se espalha pelo país. Vale lembrar, estas manifestações intestinais de rancor e ódio de classe, contra as políticas compensatórias, encontra parceiros à altura na extrema esquerda do espectro ideológico, que as enxerga como meras ferramentas de acomodação social, em prejuízo das transformações estruturais, possíveis somente pela revolução. Isto é muito bacana não fossem os objetos em questão, a miséria e a pobreza, constituídos de gente, de carne humana, de pessoas reais e não de fantoches imaginários ao serviço de vanguardas iluminadas.
A grande transformação que estas políticas podem trazer, além de dotar os debaixo com instrumentos para a conquista da cidadania plena e a ascensão social, é colocar lado a lado, na convivência cotidiana aqueles que hoje estão apartados. Será um desafio institucional e tanto, será um desafio humano necessário.

domingo, 14 de outubro de 2012

UM COMUNISTA NA DESPENSA


Há um comunista na despensa

Era o ano de 1993. Descendo as escadarias do prédio em que eu começava a dar meus primeiros passos como professor, fui abordado por um colega sorridente. O homem era um dos poucos com título de doutor naquela época e ostentava um conhecimento especializado que era para poucos.
Naquele dia eu estava acabando mais uma jornada exaustiva de inúmeras aulas. Como é comum ainda hoje para iniciantes na profissão, a quantidade de aulas que um professor substituto ministra é maior que a média daquela ministrada pelos professores efetivos. Hoje, ao menos, os professores substitutos são contratados como trabalhadores, naquela época nós éramos contratados como prestadores de serviços e, pasmem, tínhamos que recolher o imposto equivalente, sem nenhum direito trabalhista, sequer férias e décimo terceiro eram incorporados. No meu caso, a chefia da época me brindou com uma quantidade de disciplinas maior que os outros professores contratados na mesma condição, embora ganhássemos a mesma coisa. A razão que me deram era de que eu tinha um “perfil” eclético. Assim, por poder ministrar mais disciplinas, de diferentes áreas, fui trazido ao mundo imperfeito das estruturas de recompensas ruins. Eu trabalhava mais porque tinha conhecimentos mais “amplos”, mas recebia a mesma coisa que os demais. Dentre as diversas disciplinas que eu ministrava, duas eram um presente dos céus: economia neoclássica e microeconomia. Na semana de minha formatura como economista, eu peguei todos os meus textos de economia neoclássica e num ato solene fui à beira do lixo, joguei tudo fora e disse: nunca mais vou ter que ler esta porcaria. Eis que o destino me reservou pisar pela primeira vez numa sala de aula justamente para ministrar esta disciplina. Pior, para uma turma que em sua grande maioria era de repetentes. A economia neoclássica para quem não é do meio vem a ser uma espécie de campo cativo do pensamento econômico liberal. O fato é que esta armadilha do destino trouxe-me resultados muito positivos, que viriam a ser incorporados na minha formação profissional durantes os anos seguintes. Com esta disciplina eu pude desenvolver um estudo sério sobre o pensamento econômico liberal. Aprendi muito da linguagem e do método da chamada economia “utilitarista” e consegui, ao dominar esta linguagem, entender com maior facilidade a produção intelectual dentro das organizações financeiras internacionais, tema que seria decisivo no desenvolvimento de minhas pesquisas a partir do doutorado. Também foi de grande utilidade para trabalhar com a temática da regulação econômica e dos regimes internacionais, matérias que fazem parte dos meus interesses.
Mas caro leitor, vamos voltar para ao início desta crônica: foi por esta situação que eu fora abordado pelo colega doutor naquela manhã de 1993. O professor, um liberal convicto, ouvira falar que minhas aulas estavam sendo bastante admiradas pelos alunos e que por este motivo ele tinha uma oferta para me fazer: - por que você não tenta o doutorado no Instituto de Economia da URGS? Eu posso apresentá-lo aos colegas de lá e sendo aceito você terá uma formação sólida em métodos quantitativos e microeconomia. Prosseguindo, com um sorriso generoso e uma voz amistosa, o professor completou a frase com algo que seria decisivo para minha escolha futura: - o doutorado lá é muito bom; não tem marxistas, melhor, tem um, mas como  você deve saber, sempre é bom ter um deles para mostrar pros outros que há pluralidade.
Em outras palavras: é sempre bom dizer que a casa é bonita, elegante e que até há um comunista na despensa, para que todos saibam que somos tolerantes.
Eu não fui para o Rio Grande do Sul, mas aí são outros quinhentos.
Quando paro para acompanhar a grande imprensa brasileira nos dias de hoje, a sensação que tenho é que os grandes órgãos de comunicação estão caminhando neste sentido: - vamos deixar um comunista na despensa. Está cada vez mais claro que a grande imprensa optou por um caminho de oposição conservadora aos governos do PT no plano federal. Neste contexto percebe-se a tentativa  de  formação de grupo de intelectuais de direita, eu diria, a tentativa de fabricação, em marcha forçada, de uma meia dúzia deles, que empregam um ar intelectivo ao pensamento conservador e, por que não dizer, reacionário. Os programas de debates, de entrevistas, têm jornalistas escolhidos à dedo para que não haja a possibilidade de perda do controle ideológico. Em tempos de chumbo grosso, durante o regime militar, muita gente de esquerda no meio jornalístico conseguiu sobrevier graças ao seu talento. Para citar dois: Cláudio Abramo e Vladimir Herzog. Este último, tirado de sua casa para a morte numa época em que dirigia a TV Cultura em São Paulo. Sabemos que a história das artes e da cultura geral no Brasil esteve em boa medida associada a homens com vínculos com a esquerda. Gente como Di Cavalcante, Cândido Portinari, Jorge Amado, Oscar Niemayer e tantos outros que circularam do mundo da política para as artes e vice-versa. Homens de opinião. Eu suponho que o reconhecimento destes protagonistas de nossa cultura seja sobretudo fruto de seus talentos, mas também, o resultado do reconhecimento social que a indústria cultural lhes conferiu. Apesar da grande imprensa ter vínculos estruturais com os donos do poder, é comum que ela reserve espaços de diálogo com seus leitores que transcendam o estreitamento ideológico imposto por estes vínculos, os quais representam os interesses das grandes corporações e dos governos (principalmente se os governos são coerentes com os interesses dos grupos econômicos), que são seus sustentáculos financeiros. As próprias empresas de comunicação, como o grupo Abril, transformaram-se em sistemas multinegócios. Como pode ser este grupo, por exemplo, isento para tratar de questões como a educação quando ele mesmo é um prestador de serviços nesta área? O que se passa no momento, ao menos é o que me parece, como um observador que acompanha as principais publicações e os programas jornalísticos televisivos é que há uma tentativa consistente de criação de uma “cultura” conservadora. Ela, esta cultura, incorpora bandeiras progressistas que encontram alguma legitimidade social: o combate à homofobia, por exemplo. Esta incorporação suaviza um discurso que é extremamente agressivo em relação ao campo popular e às políticas sociais que visam transferir renda do orçamento para estes setores, bem como em relação às políticas de compensação de desigualdades sociais fruto de desequilíbrios históricos na oferta de bens públicos, em especial a educação. Vociferam contra o bolsa família, contra as cotas étnicas. Há também uma crescente  atenção à desconstrução de nomes consagrados na história da cultura. Estes dias eu assistia um programa que se pretende formador de opinião, quando um destes novos ícones conservadores deixou escapar esta frase: - nunca vi nada em Carlos Drummond de Andrade, a não ser o fato de ter sido um oportunista que emprestava seu nome para a esquerda em troca de reconhecimento social. A recente morte do historiador marxista Eric Hobsbawm foi acompanhada de uma série de artigos, em veículos da mídia tradicional, no mesmo sentido, ou seja, da desconstrução. É uma conduta que opera não no sentido da pluralidade, da busca do contraditório, mas no sentido de substituição excludente. Talvez a grande imprensa brasileira esteja caminhando para aquela situação descrita pelo professor doutor no ano de 1993: vamos deixar um marxista na despensa, pois é preciso aparentar um pouquinho de tolerância.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Impostos: a obsessão eleitoral americana


Artigo[1] publicado pela Foreign Affairs deste mês, por Andrea Louise Campbell, professora de ciência política do MIT, traz instigante análise sobre o sistema tributário americano. Em tempos eleitorais este é um tema quase que obsessivo na retórica dos postulantes à presidência dos EUA. Mas o tema, dada sua importância, vai além do interesse conjuntural.
A análise sobre o sistema de coleta e gastos de impostos é de suma importância para que compreendamos o perfil de uma sociedade. É por meio desta relação entre Estado e sociedade civil que muito se define em termos de estratificação social. A definição de quem taxar, quanto taxar e de com que e como gastar os impostos coletados é definidora de uma imagem coletiva dominante, ou seja, reflete as crenças e ideas de uma sociedade sobre o que ela define como prioritário na escala de escolhas disponíveis em ambiente de restrição de recursos. Se os recursos não fossem escassos e a riqueza fosse infinita, por dedução lógica não teríamos que fazer escolhas excludentes. Algumas sociedades gastam mais com educação, outras gastam com saúde, outras gastam com magistrados, outras com policiais, vejamos, gasta-se com tudo isto e mais um pouco, pois as funções do Estado Moderno foram sendo alargadas como mecanismo de pacificação social. Porém, sociedades diferem no destino de seus gastos. Além disto, vale lembrar que na constituição do Estado Moderno, a criação de um sistema racional de coleta de impostos, centralizado por um ente maior (o Estado), esteve associada à expansão do capital e das armas, ou seja à própria definição das fronteiras nacionais. Esta relação está descrita de forma magistral na obra do sociólogo Charles Tilly: Coerção, Capital e Formação dos Estados Europeus (traduzida pela EDUSP e infelizmente com edição esgotada).
O artigo de Campbell, parte de uma comparação feita em pesquisa recente (2009) da OCDE, na qual verifica-se a relação da carga tributária com o PIB em 34 países membros da organização. Neste survey,  a Dinamarca é o país que apresenta a maior carga, com 48,1% e os EUA aparecem como a antepenúltima carga tributária, com 24,1%. As cargas de Alemanhã, Japão, França, Iltália, Canadá e Inglaterra, são, respectivamente: DEU (37,3%); JPN (26,9%); FRA (42,4%); ITA (43,4%); CAN (32%); GRB (34,3%).
Analisando-se a composição das receitas na comparação entre os EUA e a média dos países da OCDE, verifica-se que o imposto sobre a renda é ligeiramente maior nos EUA (10,1%) que na OCDE (9,2%); já o montante arrecadado com as taxas para a seguridade social são sensivelmente menores nos EUA (6,6% do PIB) que na média da OCDE (9,2%), o que já antecipa uma perspectiva de gastos que diferencia o tipo de relação Estado/Sociedade Civil, principalmente entre os países riscos da Europa e os EUA. Nos EUA não há imposto sobre valor agregado (IVA), ao contrário da maioria dos países da OCDE, onde este tipo de imposto representa fonte importante da arrecadação; como herança da história federativa, nos EUA são os estados que definem o imposto sobre o varejo (sobre a circulação de mercadorias). Chega-se à situação de estados onde o imposto sobre o varejo é nulo. Algumas mercadorias (bebidas e tabaco, por exemplo, sofrem taxação nacional).
Além de baixa, em termos relativos, a carga tributária americana tem apresentado impressionante estabilidade durante os últimos sessenta anos: 25% do PIB em média.
Paralelamente, os países da OCDE, que tinham cargas equivalentes aos EUA em 1965, tiveram aumentos expressivos desde então.
Embora a carga americana se assemelhe a uma constante, sua composição tem se alterado. Uma característica da estrutura de impostos nos EUA é que o percentual nominal dos impostos sobre as corporações é equivalente aos da OCDE, atingindo o pico de 39% sobre a receita, porém o valor efetivamente pago é bem menor, situando-se em 13% sobre as receitas, na média. Isto se deve a um sistema complexo de isenções e deduções, resultado dos inúmeros lobbies que ativamente e legalmente fazem parte da estrutura decisória legislativa americana.
A principal fonte de arrecadação, continua sendo o imposto sobre a renda individual, que corresponde à 42% da coleta nacional. Durante o governo de Ronald Reagan, a alíquota máxima do imposto sobre a renda caiu de uma patamar de 35% para 28%, tendo sido recomposta no governo de George Bush para 35%, atingindo o pico de 39,6% com Clinton e retornando aos 35% da média história, pós anos 1970, no governo de Bush (filho).
Dados do governo apontam que os 1% mais ricos dos contribuintes pagaram em 2008 cerca de um terço daquilo que fora pago nos 1980, embora suas rendas tenham crescido em termos absolutos e relativos. Desde os anos Reagan a tendência tem sido no sentido de desoneração senão nominal, ao menos efetiva sobre o topo da pirâmide social.
Formalmente o sistema de impostos nos EUA é progressivo, além disto, como já foi salientado, não há cobrança de IVA, que é um imposto pesadamente regressivo, contudo, um olhar atento verificará que a prática tributária, com um sistema complexo de isenções e deduções, beneficia enormemente os setores que podem contratar os serviços de lobby e que tenham poder de veto. Setores que viram seu poder de fogo aumentar recentemente com os super PACs.
O outro lado da mesma moeda do sistema tributário compreende a estrutura de gastos. Enquanto nos EUA, comparativamente aos países ricos da OCDE (exceto Japão), a arrecadação é baixa, também a estrutura de gastos é baixa, em especial o comprometimento com programas sociais. Adicione-se a isto uma legislação trabalhista flexível, com baixa adesão à representação sindical, e teremos um quadro bem próximo de um problema crescente nos EUA: o aumento sistemático da desigualdade social desde os anos 1970.
Em 1970 o 1% mais rico dos contribuintes detinha 9% da renda nacional, já em 2007 este número pula para 23,5%. É o nível mais alto desde 1928.
Para trazer alguns dados complementares ao artigo de Campbell, seguem abaixo relações importantes para caracterizar a desigualdade americana.[2]
1) Pobreza Infantil: nos EUA, 21% de todas as crianças são pobres, um índice maior do que em todas as outras nações consideradas ricas.
Source: OECD Income Distribution questionnaire, February 2011. Data refer to 2008 for Germany, Israel, Italy, Korea, Mexico, Netherlands, New Zealand, Norway, Sweden and the United States; 2007 for Canada, Denmark and Hungary; 2006 for Chile, Estonia, Japan and Slovenia; 2005 for France, Ireland, Switzerland and the United Kingdom; 2004 for Australia, Austria, Belgium, Czech Republic, Finland, Greece, Iceland, Luxembourg, Poland, Portugal, the Slovak Republic, Spain and Turkey.

2) Desregulamentação do Mercado de Trabalho
Sindicalizados do setor privado e evolução do salário mínimo real
Source: Barry T. Hirsch and David A. Macpherson. Union Membership and Coverage Database from the CPS. See http://www.unionstats.com; http://www.census.gov/compendia/statab/cats/labor_force_employment_earnings/compensation_wages_and_earnings.html

Comparando-se a apropriação da renda pelo 1% mais rico da população, que nos EUA se apropria de 23,5% do total da renda nacional, na Alemanha o mesmo grupo captura 11%, no Japão 9% e na Holanda 5%. Um dado alarmante do artigo de Andrea é que a renda perdida por este grupo no início da crise de 2007 já tinha sido totalmente recuperada no início de 2010, enquanto a base da pirâmide social não teve a mesma sorte. A renda de 90% dos americanos permanece a mesma desde 1983.
Ao contrário dos gastos sociais nos países ricos europeus, que são parte de uma herança do Estado de Bem-Estar, que se caracterizara por programas universais do gasto social, os gastos americanos são feitos prioritariamente por deduções e compensação de crédito (o que beneficia as famílias que auferem mais renda, em detrimento das classes mais pobres). Estima-se que 2/3 dos benefícios sociais sejam destinados, por meio das modalidades descritas, para os 50% mais ricos da população.
Diante destes dados e indo além da discussão proposta pelo artigo de Andrea Louise Campbell, resta saber como o novo governo poderá manobrar o déficit fiscal explosivo, atacar o problema da desigualdade e ao mesmo tempo manter o patamar histórico da carga tributária em 25%. Ao sabor da caça aos votos o discurso republicano ainda fala em desoneração e diminuição de impostos. O último governo republicano efetivamente levou adiante um programa de desoneração tributária para os mais ricos, com um pequeno detalhe: ele chegou ao governo com uma situação fiscal bastante confortável, bem diferente do que encontrou Barack Obama e do que irá encontrar o novo presidente. Por sua vez, Clinton ocupou-se de diminuir os gastos militares e de navegar nas águas piscosas da desregulamentação e liberalização dos mercados globais, de resto, muito benéfica para as corporações americanas. Obama e Romney estão numa situação muito diferente. No plano externo, a competição pelos mercados não é tão favorável como nos exuberantes anos noventa; os conflitos reais e potenciais jogam dúvidas sobre a margem de manobra para a diminuição dos gastos militares; os gastos com defesa permaneceram estáveis durante o período Obama, após uma feroz escalada durante os anos de seu antecessor. É bom lembrar que durante o governo Clinton, comparando-se com o governo anterior, estes gastos caíram sistematicamente. No plano interno, o atual governo demonstrou baixa capacidade de enfrentamento em relação aos interesses das grandes corporações, até por falta de apetite. A emissão monetária, que é a saída adotada até agora, sustenta-se num mercado consumidor deprimido, larga capacidade ociosa e na abundante oferta de produtos baratos vindos da Ásia, mas esta pletora monetária tem seus limites. Ela não gera investimento! Sem investimento as receitas ficam deprimidas.
É possível que em algum momento os EUA tenham que enfrentar a difícil tarefa de taxar mais pesadamente os ricos e ao mesmo tempo ampliar a demanda autônoma, por meio a ampliação da presença do Estado.
Em tempo: a Dinamarca é o país que apresenta o menor número de crianças pobres entre os países da OCDE.


[1] America the Undertaxed: U.S. Fiscal Policy in Perspective (Foreign Affairs, September/October 2012).
[2] Dados e imagens obtidas a partir de Stanford Center on Poverty and Inequality (http://www.stanford.edu/group/scspi/cgi-bin/facts.php).

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Economia, Poder e Influência Externa


Prezados leitores, com satisfação informo que estou iniciando este espaço de troca de idéias, de veiculação de informações e de exercício reflexivo. Começo um blog que pretende ser um espaço onde eu possa exercer a liberdade de expressão num sentido pleno, onde os diferentes aspectos de minhas incursões pelo universo das ideias encontrem terreno fértil para a comunicação. Este espaço não pretende formar opinião, mas informar e ao mesmo tempo ser uma janela para que o autor seja informado. Seu conteúdo irá variar desde temas puramente acadêmicos aos temas que estão relacionados aos meus interesses cotidianos: a política, a poesia e as artes em geral.
Para este primeiro contato, segue a imagem de capa de meu livro, que foi publicado pela editora da UNESP no último agosto. É um livro que trata da influência do Banco Mundial nos programas de ajustamento estrutural na América Latina nos anos 1980 e 1990. Para quem estiver interessado, a obra pode ser adquirida no site da editora da UNESP  ou no site da livraria cultura