Artigo[1]
publicado pela Foreign Affairs deste mês, por Andrea Louise Campbell,
professora de ciência política do MIT, traz instigante análise sobre o sistema
tributário americano. Em tempos eleitorais este é um tema quase que obsessivo
na retórica dos postulantes à presidência dos EUA. Mas o tema, dada sua
importância, vai além do interesse conjuntural.
A
análise sobre o sistema de coleta e gastos de impostos é de suma importância para
que compreendamos o perfil de uma sociedade. É por meio desta relação entre
Estado e sociedade civil que muito se define em termos de estratificação
social. A definição de quem taxar, quanto taxar e de com que e como gastar os
impostos coletados é definidora de uma imagem coletiva dominante, ou seja,
reflete as crenças e ideas de uma sociedade sobre o que ela define como
prioritário na escala de escolhas disponíveis em ambiente de restrição de
recursos. Se os recursos não fossem escassos e a riqueza fosse infinita, por
dedução lógica não teríamos que fazer escolhas excludentes. Algumas sociedades
gastam mais com educação, outras gastam com saúde, outras gastam com
magistrados, outras com policiais, vejamos, gasta-se com tudo isto e mais um
pouco, pois as funções do Estado Moderno foram sendo alargadas como mecanismo
de pacificação social. Porém, sociedades diferem no destino de seus gastos. Além
disto, vale lembrar que na constituição do Estado Moderno, a criação de um
sistema racional de coleta de impostos, centralizado por um ente maior (o
Estado), esteve associada à expansão do capital e das armas, ou seja à própria
definição das fronteiras nacionais. Esta relação está descrita de forma
magistral na obra do sociólogo Charles Tilly: Coerção, Capital e Formação dos
Estados Europeus (traduzida pela EDUSP e infelizmente com edição esgotada).
O
artigo de Campbell, parte de uma comparação feita em pesquisa recente (2009) da
OCDE, na qual verifica-se a relação da carga tributária com o PIB em 34 países
membros da organização. Neste survey, a Dinamarca é o país que apresenta a maior
carga, com 48,1% e os EUA aparecem como a antepenúltima carga tributária, com
24,1%. As cargas de Alemanhã, Japão, França, Iltália, Canadá e Inglaterra, são,
respectivamente: DEU (37,3%); JPN (26,9%); FRA (42,4%); ITA (43,4%); CAN (32%);
GRB (34,3%).
Analisando-se
a composição das receitas na comparação entre os EUA e a média dos países da
OCDE, verifica-se que o imposto sobre a renda é ligeiramente maior nos EUA
(10,1%) que na OCDE (9,2%); já o montante arrecadado com as taxas para a
seguridade social são sensivelmente menores nos EUA (6,6% do PIB) que na média
da OCDE (9,2%), o que já antecipa uma perspectiva de gastos que diferencia o
tipo de relação Estado/Sociedade Civil, principalmente entre os países riscos
da Europa e os EUA. Nos EUA não há imposto sobre valor agregado (IVA), ao
contrário da maioria dos países da OCDE, onde este tipo de imposto representa
fonte importante da arrecadação; como herança da história federativa, nos EUA
são os estados que definem o imposto sobre o varejo (sobre a circulação de
mercadorias). Chega-se à situação de estados onde o imposto sobre o varejo é
nulo. Algumas mercadorias (bebidas e tabaco, por exemplo, sofrem taxação
nacional).
Além
de baixa, em termos relativos, a carga tributária americana tem apresentado
impressionante estabilidade durante os últimos sessenta anos: 25% do PIB em
média.
Paralelamente,
os países da OCDE, que tinham cargas equivalentes aos EUA em 1965, tiveram
aumentos expressivos desde então.
Embora
a carga americana se assemelhe a uma constante, sua composição tem se alterado.
Uma característica da estrutura de impostos nos EUA é que o percentual nominal
dos impostos sobre as corporações é equivalente aos da OCDE, atingindo o pico
de 39% sobre a receita, porém o valor efetivamente pago é bem menor,
situando-se em 13% sobre as receitas, na média. Isto se deve a um sistema
complexo de isenções e deduções, resultado dos inúmeros lobbies que ativamente
e legalmente fazem parte da estrutura decisória legislativa americana.
A
principal fonte de arrecadação, continua sendo o imposto sobre a renda
individual, que corresponde à 42% da coleta nacional. Durante o governo de
Ronald Reagan, a alíquota máxima do imposto sobre a renda caiu de uma patamar
de 35% para 28%, tendo sido recomposta no governo de George Bush para 35%,
atingindo o pico de 39,6% com Clinton e retornando aos 35% da média história,
pós anos 1970, no governo de Bush (filho).
Dados
do governo apontam que os 1% mais ricos dos contribuintes pagaram em 2008 cerca
de um terço daquilo que fora pago nos 1980, embora suas rendas tenham crescido
em termos absolutos e relativos. Desde os anos Reagan a tendência tem sido no
sentido de desoneração senão nominal, ao menos efetiva sobre o topo da pirâmide
social.
Formalmente
o sistema de impostos nos EUA é progressivo, além disto, como já foi
salientado, não há cobrança de IVA, que é um imposto pesadamente regressivo,
contudo, um olhar atento verificará que a prática tributária, com um sistema
complexo de isenções e deduções, beneficia enormemente os setores que podem
contratar os serviços de lobby e que tenham poder de veto. Setores que viram
seu poder de fogo aumentar recentemente com os super PACs.
O
outro lado da mesma moeda do sistema tributário compreende a estrutura de
gastos. Enquanto nos EUA, comparativamente aos países ricos da OCDE (exceto
Japão), a arrecadação é baixa, também a estrutura de gastos é baixa, em
especial o comprometimento com programas sociais. Adicione-se a isto uma
legislação trabalhista flexível, com baixa adesão à representação sindical, e
teremos um quadro bem próximo de um problema crescente nos EUA: o aumento sistemático
da desigualdade social desde os anos 1970.
Em
1970 o 1% mais rico dos contribuintes detinha 9% da renda nacional, já em 2007
este número pula para 23,5%. É o nível mais alto desde 1928.
Para
trazer alguns dados complementares ao artigo de Campbell, seguem abaixo
relações importantes para caracterizar a desigualdade americana.[2]
1) Pobreza Infantil: nos EUA, 21% de todas as crianças
são pobres, um índice maior do que em todas as outras nações consideradas
ricas.
Source: OECD Income Distribution questionnaire,
February 2011. Data refer to 2008 for Germany, Israel, Italy, Korea, Mexico,
Netherlands, New Zealand, Norway, Sweden and the United States; 2007 for Canada,
Denmark and Hungary; 2006 for Chile, Estonia, Japan and Slovenia; 2005 for
France, Ireland, Switzerland and the United Kingdom; 2004 for Australia,
Austria, Belgium, Czech Republic, Finland, Greece, Iceland, Luxembourg, Poland,
Portugal, the Slovak Republic, Spain and Turkey.
http://www.stanford.edu/group/scspi/cgi-bin/facts.php (acesso em 10/10/2012)
2) Desregulamentação do Mercado de Trabalho
Sindicalizados do setor privado e evolução do salário
mínimo real
Source: Barry T. Hirsch and David A. Macpherson. Union
Membership and Coverage Database from the CPS. See http://www.unionstats.com; http://www.census.gov/compendia/statab/cats/labor_force_employment_earnings/compensation_wages_and_earnings.html
Comparando-se
a apropriação da renda pelo 1% mais rico da população, que nos EUA se apropria
de 23,5% do total da renda nacional, na Alemanha o mesmo grupo captura 11%, no
Japão 9% e na Holanda 5%. Um dado alarmante do artigo de Andrea é que a renda
perdida por este grupo no início da crise de 2007 já tinha sido totalmente recuperada
no início de 2010, enquanto a base da pirâmide social não teve a mesma sorte. A
renda de 90% dos americanos permanece a mesma desde 1983.
Ao
contrário dos gastos sociais nos países ricos europeus, que são parte de uma
herança do Estado de Bem-Estar, que se caracterizara por programas universais
do gasto social, os gastos americanos são feitos prioritariamente por deduções
e compensação de crédito (o que beneficia as famílias que auferem mais renda,
em detrimento das classes mais pobres). Estima-se que 2/3 dos benefícios
sociais sejam destinados, por meio das modalidades descritas, para os 50% mais
ricos da população.
Diante destes dados e indo além da discussão proposta pelo artigo de Andrea Louise Campbell, resta saber como o novo governo poderá manobrar o déficit fiscal explosivo, atacar o problema da desigualdade e ao mesmo tempo manter o patamar histórico da carga tributária em 25%. Ao sabor da caça aos votos o discurso republicano ainda fala em desoneração e diminuição de impostos. O último governo republicano efetivamente levou adiante um programa de desoneração tributária para os mais ricos, com um pequeno detalhe: ele chegou ao governo com uma situação fiscal bastante confortável, bem diferente do que encontrou Barack Obama e do que irá encontrar o novo presidente. Por sua vez, Clinton ocupou-se de diminuir os gastos militares e de navegar nas águas piscosas da desregulamentação e liberalização dos mercados globais, de resto, muito benéfica para as corporações americanas. Obama e Romney estão numa situação muito diferente. No plano externo, a competição pelos mercados não é tão favorável como nos exuberantes anos noventa; os conflitos reais e potenciais jogam dúvidas sobre a margem de manobra para a diminuição dos gastos militares; os gastos com defesa permaneceram estáveis durante o período Obama, após uma feroz escalada durante os anos de seu antecessor. É bom lembrar que durante o governo Clinton, comparando-se com o governo anterior, estes gastos caíram sistematicamente. No plano interno, o atual governo demonstrou baixa capacidade de enfrentamento em relação aos interesses das grandes corporações, até por falta de apetite. A emissão monetária, que é a saída adotada até agora, sustenta-se num mercado consumidor deprimido, larga capacidade ociosa e na abundante oferta de produtos baratos vindos da Ásia, mas esta pletora monetária tem seus limites. Ela não gera investimento! Sem investimento as receitas ficam deprimidas.
Diante destes dados e indo além da discussão proposta pelo artigo de Andrea Louise Campbell, resta saber como o novo governo poderá manobrar o déficit fiscal explosivo, atacar o problema da desigualdade e ao mesmo tempo manter o patamar histórico da carga tributária em 25%. Ao sabor da caça aos votos o discurso republicano ainda fala em desoneração e diminuição de impostos. O último governo republicano efetivamente levou adiante um programa de desoneração tributária para os mais ricos, com um pequeno detalhe: ele chegou ao governo com uma situação fiscal bastante confortável, bem diferente do que encontrou Barack Obama e do que irá encontrar o novo presidente. Por sua vez, Clinton ocupou-se de diminuir os gastos militares e de navegar nas águas piscosas da desregulamentação e liberalização dos mercados globais, de resto, muito benéfica para as corporações americanas. Obama e Romney estão numa situação muito diferente. No plano externo, a competição pelos mercados não é tão favorável como nos exuberantes anos noventa; os conflitos reais e potenciais jogam dúvidas sobre a margem de manobra para a diminuição dos gastos militares; os gastos com defesa permaneceram estáveis durante o período Obama, após uma feroz escalada durante os anos de seu antecessor. É bom lembrar que durante o governo Clinton, comparando-se com o governo anterior, estes gastos caíram sistematicamente. No plano interno, o atual governo demonstrou baixa capacidade de enfrentamento em relação aos interesses das grandes corporações, até por falta de apetite. A emissão monetária, que é a saída adotada até agora, sustenta-se num mercado consumidor deprimido, larga capacidade ociosa e na abundante oferta de produtos baratos vindos da Ásia, mas esta pletora monetária tem seus limites. Ela não gera investimento! Sem investimento as receitas ficam deprimidas.
É
possível que em algum momento os EUA tenham que enfrentar a difícil tarefa de
taxar mais pesadamente os ricos e ao mesmo tempo ampliar a demanda autônoma,
por meio a ampliação da presença do Estado.
Em tempo: a Dinamarca é o país que apresenta o menor número de crianças pobres entre os países da OCDE.
Em tempo: a Dinamarca é o país que apresenta o menor número de crianças pobres entre os países da OCDE.
Os EUA são um gigante em cheque, na minha modesta opinião: sistema financeiro predatório, concentração de renda sem sinais ou intenção de melhoras, modelo eleitoral questionável etc.
ResponderExcluirtudo certinho, amigo; tudo que você fala estou de acordo; como estamos vivendo tempos onde os grandes meios de comunicam não levam à sério os assuntos relevantes, ficará difícil traduzir ao público as inconsistências das democracias maduras; da nossa parte, creio que temos que nos inventar...
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