quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Violência, desigualdade e políticas compensatórias


Violência, desigualdade e políticas compensatórias
Há quem diga que estar na pele do outro ajuda a entender seus sentimentos. Não dá para estar na pele do outro no sentido real do termo, mas figurativamente é o que devemos tentar fazer quando estamos julgando alguém, emitindo opiniões e sobretudo quando estes atos forem seguidos de algum tipo de interferência na vida alheia. Na prática, a forma como nos inserimos no mundo nos aproxima e ao mesmo tempo nos distancia dos diferentes contextos da vida social. Por seu turno, a inserção social está muito relacionada ao nosso nível de renda. Quanto maior for a desigualdade social, possivelmente maior será o afastamento real entre pobres e ricos. Este afastamento não é só material, é também simbólico, representacional, criando mundos que coexistem mas se afastam. É a cultura do “estrangeiro”, onde, embora formalmente pertences à mesma nação estes seres não se reconhecem mutuamente.  Mesmo que haja proximidade física, elementos simbólicos e materiais se erguem como verdadeiras barreiras que apartam os homens. A proximidade física pode se dar por um conjunto de moradias bem arquitetadas cercadas pelos barracos furados, erguidos com papelão e rejeitos da sociedade de consumo, mas esta proximidade está separada por redes de segurança, por muros, por câmeras, por uma série de equipamentos e códigos e gente e aparatos que criam uma verdadeira apartação social.
Este é o resultado de um Brasil de escravos. Este é o resultado de um Brasil sem república, ou da república criada por decreto para legar aos filhos bem nascidos os direitos cartoriais, que ainda marcam a boa vida de uma parcela pequena e bem abastada de nossa população. Este é o resultado de um país, que primeiro optou por uma modernização conservadora e excludente nos anos 1970 e depois ficou vinte e cinco anos sob a égide de uma desorganização de suas estruturas de serviços sociais e de infraestrutura física, por conta da crise fiscal do Estado, resultado da explosão do endividamento externo no início dos anos oitenta. Hiperinflação e baixo crescimento produziram cidades doentes e um cultura social de extrema violência. Sim, o Brasil é extremamente violento e profundamente desigual. Nossas cidades são o resultado concreto disto: faltam elementos básicos para a vida social, como esgotamento sanitário e sistemas adequados de mobilidade urbana. As imagens dos aglomerados urbanos que se estendem na franja das megacidades, ou das manchas degradadas na cartografia das áreas ricas, como São Paulo, e que se elevam pela topografia vertical das montanhas cariocas chegam a compor uma manifestação pictórica surrealista. Há pouco o IBGE divulgou dados sobre Florianópolis, como a cidade com maior número de ricos (classes A e B) em termos proporcionais. Esta Beverly Hills do sul é um estrondo de má administração, de especulação imobiliária e de violência. É um colosso de desigualdade. São mais de 68 favelas espalhadas pela capital catarinense. Nego-me a falar sobre os índices de esgotamento sanitário, pois a cidade é uma cloaca gigantesca. Estas duas cidades têm prioridades diferentes, desejos diferentes e imagem coletivas muitas vezes antagônicas.
A desigualdade e o desmantelamento do estado, no Brasil, deixaram raízes profundas. Faz pouco que os problemas começaram a ser atacados por meio de politicas compensatórias no plano social, embora o passivo seja imenso e o tempo para diminuí-lo escasso. A violência guarda uma forte relação com a desigualdade, pior, a desigualdade produz uma cultura de violência sem que  as pessoas se deem conta disto. Como a desigualdade está profundamente associada a uma sociedade que se estabelece com uma estrutura de recompensas injusta, ela cria um discurso violento e autoritário que aparece na relação entre o andar de cima com o andar de baixo. A violência vai e volta, como na física. O lugar extremo em que este discurso se materializa de forma dantesca é o sistema prisional brasileiro, feito para pobres, miseráveis e pretos. São laboratórios do inferno, onde tortura, sevícia e toda sorte de doenças físicas e mentais proliferam. O Brasil é uma pátria que atenta aos direitos humanos, sobretudo, porque a insensibilidade com o outro é acachapante. Como a apartação social ganhou contornos dramáticos no período de nossa decadência econômica, seus efeitos são muito difíceis de serem combatidos, principalmente porque internalizamos uma sociabilidade que não reconhece como “pertencente” justamente aqueles que mais duramente sofreram os efeitos perversos dos ajustes econômicos do passado. Há quem diga: pobreza não guarda relação com a violência. Sim, não guarda, mas numa sociedade capitalista, que promete a ascensão social como seu fundamento moral, a interrupção contínua desta possibilidade pela captura de suas instituições por parte da elite branca (sim, os beneficiários históricos no Brasil são brancos), gera uma reação violenta, que politicamente não organizada desemboca na selva da luta pelos quinhões que as mágicas propagandeadas pela indústria cultural oferece. Condições sanitárias ruins, saúde e educação sofríveis e habitações degradas, somadas ao subemprego ou desemprego, quando levadas a cabo de forma permanente durante longo período de tempo, não podem resultar numa sociedade harmônica. Este é o retrato do Brasil. Reagir a isto por meio das corporações militares subnacionais, da polícia civil e da estrutura de coerção é uma contingência, uma manifestação de que algo insuportável precisa ser corrigido. Ter isto como uma solução estruturante é caminhar para um contexto onde a violência se retroalimento numa escala, que de tempos em tempos pode ser mitigada, mas que volta com força no agravamento da situação econômica quando das baixas dos ciclos de negócios. O Brasil tem hoje, para ricos e pobres, a violência como elemento constitutivo de suas sociabilidades, basta ver a manifestação estética desta realidade pela produção cultural de entretenimento relacionado à violência. Esta tragédia tem convivido com forças de contenção, sendo a principal delas a diminuição do desemprego, de forma persistente, nos últimos dez anos. Numa quadra onde o contexto internacional é sombrio, estamos conseguindo manter níveis elevados de emprego. As ações compensatórias específicas, como o bolsa família, têm possibilitado que o país conste como o maior case de sucesso no combate à pobreza, mas tão importante quanto, à desigualdade. A isto soma-se a política de valorização real do salário mínimo, que beneficia grande parte de população pobre e miserável, por conta de sua relação com a seguridade social. Será preciso aumentar, muito, o investimento em educação e possibilitar, já, porque o passivo é enorme, o acesso do andar de baixo ao que nossas instituições públicas podem oferecer de melhor. A universidade pública é um destes lugares. O acesso aos postos de trabalho no aparato estatal também deve ser uma meta. O Estado brasileiro não pode ser a expressão pura e simples do “mérito”, leia-se, do bom desempenho que os candidatos podem auferir numa prova específica. O conceito de acesso, sem prescindir do mérito (pelo óbvio), precisa ser ponderado por ingredientes sócio ambientais. Isto implica mudar a ossatura do estado, levando para dentro de sua constituição a pluralidade da vida social brasileira. Nosso Estado é, ainda, um Estado a serviço das classes sociais mais abastadas. Distorções estruturais como temos no Brasil não serão corrigidas pelo beneplácito das ações caridosas, tampouco pelo livre jogo do mercado. Assim como uma situação econômica crítica não muda de patamar pelo puro e simples espírito animal dos capitalistas, a transformação das injustiças não será mero resultado do crescimento econômico, embora este seja um componente importantíssimo.
Para que se desconstrua a cultura da violência é preciso que insistamos na expansão dos setores de renda média e que façamos as classes A e B contribuírem com os esforços de diminuição das desigualdades. Isto se faz pela cessão de parte de sua riqueza, seja da riqueza conquistada pelo trabalho,  mas principalmente daquela originária das rendas patrimoniais, que muitas vezes não vieram pelo esforço do trabalho. O acesso, para não dizer exclusivo, privilegiado aos melhores postos da burocracia estatal, aos melhores bancos das escolhas públicas, o acesso desigual ao aparato judicial são todos elementos de produção de desigualdade em larga escala. Os que a isto estão acostumados tendem a encarar a perda destes privilégios, ou da exclusividade de acesso, como um ato de rapina. Não há, nestes, a consciência sobre a verdadeira rapina: a interdição histórica do acesso das camadas populares aos bens públicos essenciais. A interdição à uma condição ambiental mínima para que pudessem competir no mercado, desenvolvendo suas “vocações”, suas habilidades específicas. A violência no Brasil é tão grande, a violência contra os debaixo, que 200 ocorrências de incêndio foram registradas este ano nas favelas de São Paulo. Intencional ou não, esta pirotecnia social aparece pelas condições de degredo que esta gente se encontra. Somente uma alienação patológica, produto do apartação social, pode legar alguém a imaginar que uma sociedade com este tipo de fratura pode dar-se ao luxo de não praticar políticas de compensação social ativa. Trata-se de um autismo de classe, repito: de classe. Como grupos encerrados em seus próprios enredos, confinados em suas belas arquiteturas, simplesmente não podem aceitar o que se passa diante de seus olhos, pois não reconhecem, não conferem ao outro, ao degredado, o fato de que foram e são constituídos da mesma matéria: a carne humana. Agora, sob o manto de pseudo intelectuais, encontram representantes vociferantes na mídia tradicional, capazes de distorcer fatos, como quem troca de roupa, de promover uma verdadeira mixórdia conceitual que confunde as cabeças cheirosas, porém pouco pensantes. Há pouco li um destes filósofos comparar as políticas compensatórias com a criação de um Estado fascista. Esquece que se há algo de fascista nas políticas públicas e no imaginário social do Brasil contemporâneo, são as políticas higienistas e a concepção do combate à violência pelo utilização preponderante do aparato repressivo, coercitivo do Estado. Se há algo de fascista, este algo está na utilização cotidiana da tortura como método de investigação e de subjugação humana. Estas, sim, são políticas muito apropriadas para a ética e a estética da violência que se espalha pelo país. Vale lembrar, estas manifestações intestinais de rancor e ódio de classe, contra as políticas compensatórias, encontra parceiros à altura na extrema esquerda do espectro ideológico, que as enxerga como meras ferramentas de acomodação social, em prejuízo das transformações estruturais, possíveis somente pela revolução. Isto é muito bacana não fossem os objetos em questão, a miséria e a pobreza, constituídos de gente, de carne humana, de pessoas reais e não de fantoches imaginários ao serviço de vanguardas iluminadas.
A grande transformação que estas políticas podem trazer, além de dotar os debaixo com instrumentos para a conquista da cidadania plena e a ascensão social, é colocar lado a lado, na convivência cotidiana aqueles que hoje estão apartados. Será um desafio institucional e tanto, será um desafio humano necessário.

3 comentários:

  1. Jaime, discutíamos justamente este assunto ontem durante a aula e minha defesa às políticas compensatórias e ações afirmativas foi confrontada por alguns argumentos, como nossa postura salvacionista e a pouca mudança constatada por pesquisas empíricas em algumas cidades grandemente beneficiadas pelo bolsa família. Mas realmente, nenhum argumento me demove da crença de que, em se tratando da miséria humana, discriminações positivas são muitas vezes necessárias pra que a igualdade formal não sirva apenas como forma de perpetuar desigualdades materiais. Logicamente elas precisam estar acompanhadas de outras mudanças que promovam uma reforma estrutural a longo prazo, mas este passo inicial precisa ser dado. Vivemos em uma sociedade em que a balança pende para o individual, deixando o social em segundo plano e nos afastando da dimensão do todo do qual somos parte e, como tal, responsáveis! Extremamente pertinente a discussão e perfeito o texto! Parabéns!

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  2. Querida Renata, todas as pesquisas consistentes mostram os efeitos positivos, no Brasil, das políticas específicas em andamento. A estratégia de combate à apartação social passa por isto, mas como toda estratégia de políticas públicas deve estar inserida num programa que contemple ações emergenciais e de longo prazo (estruturantes).
    Acima de tudo: precisamos trabalhar para romper as amarras simbólicas que perpetuam a desigualdade, sejam aquelas que estão na forma da lei, seja as que estão em nossas ações cotidianas. Obrigadão pelo comentário!

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  3. Jaime, obrigada pela atenção e resposta! Com a calma necessária vou ler todos os textos do blog e comentar sempre que puder contribuir! Um abraço!

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