domingo, 14 de outubro de 2012

UM COMUNISTA NA DESPENSA


Há um comunista na despensa

Era o ano de 1993. Descendo as escadarias do prédio em que eu começava a dar meus primeiros passos como professor, fui abordado por um colega sorridente. O homem era um dos poucos com título de doutor naquela época e ostentava um conhecimento especializado que era para poucos.
Naquele dia eu estava acabando mais uma jornada exaustiva de inúmeras aulas. Como é comum ainda hoje para iniciantes na profissão, a quantidade de aulas que um professor substituto ministra é maior que a média daquela ministrada pelos professores efetivos. Hoje, ao menos, os professores substitutos são contratados como trabalhadores, naquela época nós éramos contratados como prestadores de serviços e, pasmem, tínhamos que recolher o imposto equivalente, sem nenhum direito trabalhista, sequer férias e décimo terceiro eram incorporados. No meu caso, a chefia da época me brindou com uma quantidade de disciplinas maior que os outros professores contratados na mesma condição, embora ganhássemos a mesma coisa. A razão que me deram era de que eu tinha um “perfil” eclético. Assim, por poder ministrar mais disciplinas, de diferentes áreas, fui trazido ao mundo imperfeito das estruturas de recompensas ruins. Eu trabalhava mais porque tinha conhecimentos mais “amplos”, mas recebia a mesma coisa que os demais. Dentre as diversas disciplinas que eu ministrava, duas eram um presente dos céus: economia neoclássica e microeconomia. Na semana de minha formatura como economista, eu peguei todos os meus textos de economia neoclássica e num ato solene fui à beira do lixo, joguei tudo fora e disse: nunca mais vou ter que ler esta porcaria. Eis que o destino me reservou pisar pela primeira vez numa sala de aula justamente para ministrar esta disciplina. Pior, para uma turma que em sua grande maioria era de repetentes. A economia neoclássica para quem não é do meio vem a ser uma espécie de campo cativo do pensamento econômico liberal. O fato é que esta armadilha do destino trouxe-me resultados muito positivos, que viriam a ser incorporados na minha formação profissional durantes os anos seguintes. Com esta disciplina eu pude desenvolver um estudo sério sobre o pensamento econômico liberal. Aprendi muito da linguagem e do método da chamada economia “utilitarista” e consegui, ao dominar esta linguagem, entender com maior facilidade a produção intelectual dentro das organizações financeiras internacionais, tema que seria decisivo no desenvolvimento de minhas pesquisas a partir do doutorado. Também foi de grande utilidade para trabalhar com a temática da regulação econômica e dos regimes internacionais, matérias que fazem parte dos meus interesses.
Mas caro leitor, vamos voltar para ao início desta crônica: foi por esta situação que eu fora abordado pelo colega doutor naquela manhã de 1993. O professor, um liberal convicto, ouvira falar que minhas aulas estavam sendo bastante admiradas pelos alunos e que por este motivo ele tinha uma oferta para me fazer: - por que você não tenta o doutorado no Instituto de Economia da URGS? Eu posso apresentá-lo aos colegas de lá e sendo aceito você terá uma formação sólida em métodos quantitativos e microeconomia. Prosseguindo, com um sorriso generoso e uma voz amistosa, o professor completou a frase com algo que seria decisivo para minha escolha futura: - o doutorado lá é muito bom; não tem marxistas, melhor, tem um, mas como  você deve saber, sempre é bom ter um deles para mostrar pros outros que há pluralidade.
Em outras palavras: é sempre bom dizer que a casa é bonita, elegante e que até há um comunista na despensa, para que todos saibam que somos tolerantes.
Eu não fui para o Rio Grande do Sul, mas aí são outros quinhentos.
Quando paro para acompanhar a grande imprensa brasileira nos dias de hoje, a sensação que tenho é que os grandes órgãos de comunicação estão caminhando neste sentido: - vamos deixar um comunista na despensa. Está cada vez mais claro que a grande imprensa optou por um caminho de oposição conservadora aos governos do PT no plano federal. Neste contexto percebe-se a tentativa  de  formação de grupo de intelectuais de direita, eu diria, a tentativa de fabricação, em marcha forçada, de uma meia dúzia deles, que empregam um ar intelectivo ao pensamento conservador e, por que não dizer, reacionário. Os programas de debates, de entrevistas, têm jornalistas escolhidos à dedo para que não haja a possibilidade de perda do controle ideológico. Em tempos de chumbo grosso, durante o regime militar, muita gente de esquerda no meio jornalístico conseguiu sobrevier graças ao seu talento. Para citar dois: Cláudio Abramo e Vladimir Herzog. Este último, tirado de sua casa para a morte numa época em que dirigia a TV Cultura em São Paulo. Sabemos que a história das artes e da cultura geral no Brasil esteve em boa medida associada a homens com vínculos com a esquerda. Gente como Di Cavalcante, Cândido Portinari, Jorge Amado, Oscar Niemayer e tantos outros que circularam do mundo da política para as artes e vice-versa. Homens de opinião. Eu suponho que o reconhecimento destes protagonistas de nossa cultura seja sobretudo fruto de seus talentos, mas também, o resultado do reconhecimento social que a indústria cultural lhes conferiu. Apesar da grande imprensa ter vínculos estruturais com os donos do poder, é comum que ela reserve espaços de diálogo com seus leitores que transcendam o estreitamento ideológico imposto por estes vínculos, os quais representam os interesses das grandes corporações e dos governos (principalmente se os governos são coerentes com os interesses dos grupos econômicos), que são seus sustentáculos financeiros. As próprias empresas de comunicação, como o grupo Abril, transformaram-se em sistemas multinegócios. Como pode ser este grupo, por exemplo, isento para tratar de questões como a educação quando ele mesmo é um prestador de serviços nesta área? O que se passa no momento, ao menos é o que me parece, como um observador que acompanha as principais publicações e os programas jornalísticos televisivos é que há uma tentativa consistente de criação de uma “cultura” conservadora. Ela, esta cultura, incorpora bandeiras progressistas que encontram alguma legitimidade social: o combate à homofobia, por exemplo. Esta incorporação suaviza um discurso que é extremamente agressivo em relação ao campo popular e às políticas sociais que visam transferir renda do orçamento para estes setores, bem como em relação às políticas de compensação de desigualdades sociais fruto de desequilíbrios históricos na oferta de bens públicos, em especial a educação. Vociferam contra o bolsa família, contra as cotas étnicas. Há também uma crescente  atenção à desconstrução de nomes consagrados na história da cultura. Estes dias eu assistia um programa que se pretende formador de opinião, quando um destes novos ícones conservadores deixou escapar esta frase: - nunca vi nada em Carlos Drummond de Andrade, a não ser o fato de ter sido um oportunista que emprestava seu nome para a esquerda em troca de reconhecimento social. A recente morte do historiador marxista Eric Hobsbawm foi acompanhada de uma série de artigos, em veículos da mídia tradicional, no mesmo sentido, ou seja, da desconstrução. É uma conduta que opera não no sentido da pluralidade, da busca do contraditório, mas no sentido de substituição excludente. Talvez a grande imprensa brasileira esteja caminhando para aquela situação descrita pelo professor doutor no ano de 1993: vamos deixar um marxista na despensa, pois é preciso aparentar um pouquinho de tolerância.

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