Há um comunista na despensa
Era o ano de 1993. Descendo as escadarias do prédio em que
eu começava a dar meus primeiros passos como professor, fui abordado por um
colega sorridente. O homem era um dos poucos com título de doutor naquela época
e ostentava um conhecimento especializado que era para poucos.
Naquele dia eu estava acabando mais uma jornada exaustiva de
inúmeras aulas. Como é comum ainda hoje para iniciantes na profissão, a
quantidade de aulas que um professor substituto ministra é maior que a média daquela
ministrada pelos professores efetivos. Hoje, ao menos, os professores
substitutos são contratados como trabalhadores, naquela época nós éramos
contratados como prestadores de serviços e, pasmem, tínhamos que recolher o
imposto equivalente, sem nenhum direito trabalhista, sequer férias e décimo
terceiro eram incorporados. No meu caso, a chefia da época me brindou com uma
quantidade de disciplinas maior que os outros professores contratados na mesma
condição, embora ganhássemos a mesma coisa. A razão que me deram era de que eu
tinha um “perfil” eclético. Assim, por poder ministrar mais disciplinas, de
diferentes áreas, fui trazido ao mundo imperfeito das estruturas de recompensas
ruins. Eu trabalhava mais porque tinha conhecimentos mais “amplos”, mas recebia
a mesma coisa que os demais. Dentre as diversas disciplinas que eu ministrava,
duas eram um presente dos céus: economia neoclássica e microeconomia. Na semana
de minha formatura como economista, eu peguei todos os meus textos de economia
neoclássica e num ato solene fui à beira do lixo, joguei tudo fora e disse:
nunca mais vou ter que ler esta porcaria. Eis que o destino me reservou pisar
pela primeira vez numa sala de aula justamente para ministrar esta disciplina. Pior,
para uma turma que em sua grande maioria era de repetentes. A economia
neoclássica para quem não é do meio vem a ser uma espécie de campo cativo do
pensamento econômico liberal. O fato é que esta armadilha do destino trouxe-me
resultados muito positivos, que viriam a ser incorporados na minha formação
profissional durantes os anos seguintes. Com esta disciplina eu pude
desenvolver um estudo sério sobre o pensamento econômico liberal. Aprendi muito
da linguagem e do método da chamada economia “utilitarista” e consegui, ao
dominar esta linguagem, entender com maior facilidade a produção intelectual
dentro das organizações financeiras internacionais, tema que seria decisivo no
desenvolvimento de minhas pesquisas a partir do doutorado. Também foi de grande
utilidade para trabalhar com a temática da regulação econômica e dos regimes
internacionais, matérias que fazem parte dos meus interesses.
Mas caro leitor, vamos voltar para ao início desta crônica:
foi por esta situação que eu fora abordado pelo colega doutor naquela manhã de
1993. O professor, um liberal convicto, ouvira falar que minhas aulas estavam
sendo bastante admiradas pelos alunos e que por este motivo ele tinha uma
oferta para me fazer: - por que você não tenta o doutorado no Instituto de
Economia da URGS? Eu posso apresentá-lo aos colegas de lá e sendo aceito você
terá uma formação sólida em métodos quantitativos e microeconomia.
Prosseguindo, com um sorriso generoso e uma voz amistosa, o professor completou
a frase com algo que seria decisivo para minha escolha futura: - o doutorado lá
é muito bom; não tem marxistas, melhor, tem um, mas como você deve saber, sempre é bom ter um deles
para mostrar pros outros que há pluralidade.
Em outras palavras: é sempre bom dizer que a casa é bonita,
elegante e que até há um comunista na despensa, para que todos saibam que somos
tolerantes.
Eu não fui para o Rio Grande do Sul, mas aí são outros
quinhentos.
Quando paro para acompanhar a grande imprensa brasileira nos
dias de hoje, a sensação que tenho é que os grandes órgãos de comunicação estão
caminhando neste sentido: - vamos deixar um comunista na despensa. Está cada
vez mais claro que a grande imprensa optou por um caminho de oposição
conservadora aos governos do PT no plano federal. Neste contexto percebe-se a
tentativa de formação de grupo de intelectuais de direita,
eu diria, a tentativa de fabricação, em marcha forçada, de uma meia dúzia
deles, que empregam um ar intelectivo ao pensamento conservador e, por que não
dizer, reacionário. Os programas de debates, de entrevistas, têm jornalistas
escolhidos à dedo para que não haja a possibilidade de perda do controle
ideológico. Em tempos de chumbo grosso, durante o regime militar, muita gente
de esquerda no meio jornalístico conseguiu sobrevier graças ao seu talento.
Para citar dois: Cláudio Abramo e Vladimir Herzog. Este último, tirado de sua
casa para a morte numa época em que dirigia a TV Cultura em São Paulo. Sabemos
que a história das artes e da cultura geral no Brasil esteve em boa medida
associada a homens com vínculos com a esquerda. Gente como Di Cavalcante,
Cândido Portinari, Jorge Amado, Oscar Niemayer e tantos outros que circularam
do mundo da política para as artes e vice-versa. Homens de opinião. Eu suponho
que o reconhecimento destes protagonistas de nossa cultura seja sobretudo fruto
de seus talentos, mas também, o resultado do reconhecimento social que a
indústria cultural lhes conferiu. Apesar da grande imprensa ter vínculos
estruturais com os donos do poder, é comum que ela reserve espaços de diálogo
com seus leitores que transcendam o estreitamento ideológico imposto por estes
vínculos, os quais representam os interesses das grandes corporações e dos
governos (principalmente se os governos são coerentes com os interesses dos
grupos econômicos), que são seus sustentáculos financeiros. As próprias
empresas de comunicação, como o grupo Abril, transformaram-se em sistemas
multinegócios. Como pode ser este grupo, por exemplo, isento para tratar de
questões como a educação quando ele mesmo é um prestador de serviços nesta área?
O que se passa no momento, ao menos é o que me parece, como um observador que
acompanha as principais publicações e os programas jornalísticos televisivos é
que há uma tentativa consistente de criação de uma “cultura” conservadora. Ela,
esta cultura, incorpora bandeiras progressistas que encontram alguma
legitimidade social: o combate à homofobia, por exemplo. Esta incorporação
suaviza um discurso que é extremamente agressivo em relação ao campo popular e
às políticas sociais que visam transferir renda do orçamento para estes
setores, bem como em relação às políticas de compensação de desigualdades
sociais fruto de desequilíbrios históricos na oferta de bens públicos, em
especial a educação. Vociferam contra o bolsa família, contra as cotas étnicas.
Há também uma crescente atenção à
desconstrução de nomes consagrados na história da cultura. Estes dias eu assistia
um programa que se pretende formador de opinião, quando um destes novos ícones
conservadores deixou escapar esta frase: - nunca vi nada em Carlos Drummond de
Andrade, a não ser o fato de ter sido um oportunista que emprestava seu nome
para a esquerda em troca de reconhecimento social. A recente morte do
historiador marxista Eric Hobsbawm foi acompanhada de uma série de artigos, em
veículos da mídia tradicional, no mesmo sentido, ou seja, da desconstrução. É
uma conduta que opera não no sentido da pluralidade, da busca do contraditório,
mas no sentido de substituição excludente. Talvez a grande imprensa brasileira
esteja caminhando para aquela situação descrita pelo professor doutor no ano de
1993: vamos deixar um marxista na despensa, pois é preciso aparentar um
pouquinho de tolerância.
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